quarta-feira, 25 de abril de 2012

O corpo e a alma do circo


Outro dia ouvi um comentário interessante de uma espectadora do filme O palhaço, de Selton Melo: que o raro diálogo do filme dava margem para que aquele que assiste ao filme exercite sua nostalgia circense. De fato, o vazio que se abre entre a lona e o chão do picadeiro é o espaço em que se exercita não só a nostalgia, mas o inconsciente, de onde brotam as imagens simbólicas que envolvem o exercício extremo do corpo, esse elemento do qual é feito o espetáculo circense. O corpo é levado ao seu extremo elástico, expressivo. O ginasta suporta pesos impensáveis ao físico "normal", a flexibilidade do trapezista é a segurança de que não cairá das alturas, a elegância dos movimentos da aramista emprestam a leveza da dançarina. Nessas imagens se projetam os nossos sonhos, a nossa sobrehumanidade. Num artigo escrito na década de 1970, o homem de teatro Miroel Silveira defende que o circo é o "espaço arquetipal emergente", ou seja, nele vemos não o corpo se projetando em risco constante, mas os mitos de Hércules, Ícaro, Jasão, deuses e semideuses, heróis e musas... E os artistas são humanos como nós, emprestam seus corpos para que realizemos a fantasia de sermos algo que extrapola nossa vida comum e cotidiana. E o corpo do palhaço? Jocoso, disforme, grotesco, mas nele mora a graça que irá explodir em nossas gargalhadas... Um espaço de sonho? Não, muito mais. Um espaço em que nos vestimos com os arquétipos para renovar nossa alma. Nesse sentido o circo é a expressão perfeita da síntese de Apolo e Dionísio,  como procurou encontrar um velho filósofo do século 19, Nietzsche. Talvez este seja o fascínio instantâneo de quem entra num espetáculo circense. Me lembro quando levei minha filha a primeira vez ao circo e do quanto ela mirava o alto da lona... Sim, lá no alto está o nosso inconsciente, pronto a ser povoado pelos mitos. E nosso próprio corpo, cá embaixo, acolhe as imagens que se materializam diante dos nossos olhos, como o coelho que sai da cartola: nossa capacidade de subjetivar a vida nunca se fez tão clara!

Nenhum comentário: