segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Mixórdia no picadeiro

O termo mixórdia, esquecido no nosso vocabulário, tem diversos significados, mas se destaca entre eles o de "embrulhada", termo também antigo para designar "confusão". A maior parte das peças de circo-teatro acabam em mixórdia, corre-corre, tiros e gritaria. Como a maior parte das comédias de picadeiro trabalham uma única situação que vai se tornando cada vez mais complexa, até não conseguir mais ser desenvolvida, a solução típica de palhaço é concluir a situação com um providencial corre-corre. Mas mixórdia quer dizer também mistura. E é nesse sentido que ele serve perfeitamente para tratar do mesmo tema do circo-teatro. No caso brasileiro, que conheço melhor por ter estudado por anos, a dramaticidade do picadeiro mistura deliberadamente outros gêneros teatrais e outras referências culturais de diversos períodos: teatro clássico, comédia dell'Arte, teatro de rua, melodrama, cinema, rádio, futebol, carnaval. Sem problema algum. Não há purismo estético no circo. É o verdadeiro vale tudo. Isso porque a justificativa maior da mixórdia já está dada: o riso do público. Ou as lágrimas do público. Meu esforço de pesquisa no doutoramento, que desenvolvi na Escola de Comunicações e Artes da USP, mais efetivamente junto ao Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Censura, que inclui os processos de censura presentes no Arquivo Miroel Silveira, foi o de desvendar essa mixórdia e sinalizar sua imensa contribuição à cena paulista, muitas vezes deixada de lado por pesquisadores. Defendido em 2009, o doutorado está ganhando formato em publicação, novidade que, em breve postarei aqui para os leitores do blog. Por enquanto segue um trecho da apresentação do livro:


"O menino, caminhando com cautela por sob a arquibancada, se aproxima do vão entre os assentos e, por entre as pernas dos pagantes, fixa o olhar na cena que se desenrola no pequeno palco disposto próximo ao picadeiro. Na cena, três ou quatro personagens parecem petrificar, em sua imobilidade, a gravidade do momento. O silêncio da assistência corrobora com a dramaticidade dos atores vestidos em roupas comuns, de pessoas comuns, camisas, calças, vestidos, como os daqueles que assistem à cena. Súbito, um dos personagens levanta a mão direita, após capturar de dentro das vestes um punhal visível até ao mais distante espectador, aquele que, por falta de local melhor, se assentou no topo da arquibancada lotada. O ato é acompanhado por um muxoxo geral e a reação de outro personagem, que em luta corporal tenta desarmar o malfeitor, gera um remexer de ancas nos assentos de tábua, numa agitação quase silenciosa. A cena se resolve e, como se ninguém sob a lona daquele circo soubesse, o bem triunfa sobre o mal. O garoto, oculto entre as pernas dos pagantes, não tem tempo para viver tão intensa emoção, esta que, por vezes fazia algum incauto desabar do “poleiro” após súbito desmaio. Ele esperava apanhar a cena de picadeiro em que o palhaço, vestido de mulher, com a roupa colorida por baixo, levanta a saia e solta um gemido jocoso, enxugando lágrimas invisíveis com a bainha levantada sob a trovoada de gargalhadas da platéia. Mas aquele era o dia do drama, embora também tivesse palhaço. No entanto, não só para ele, mas para cada alma pagante que preenchia aquela arquibancada, a encenação, fosse ela séria ou cômica, reunia toda a emoção que alguém poderia viver além da vida cotidiana. Repleta de imagens e situações pungentes, as cenas do circo-teatro podiam tanto suspender a respiração do espectador, quanto fazê-lo explodir em risos, pois elas ofereciam a matéria-prima da vida, que, teria dito um certo bardo, também era a dos sonhos."

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