
"O menino, caminhando com cautela por sob a arquibancada, se aproxima do vão entre os assentos e, por entre as pernas dos pagantes, fixa o olhar na cena que se desenrola no pequeno palco disposto próximo ao picadeiro. Na cena, três ou quatro personagens parecem petrificar, em sua imobilidade, a gravidade do momento. O silêncio da assistência corrobora com a dramaticidade dos atores vestidos em roupas comuns, de pessoas comuns, camisas, calças, vestidos, como os daqueles que assistem à cena. Súbito, um dos personagens levanta a mão direita, após capturar de dentro das vestes um punhal visível até ao mais distante espectador, aquele que, por falta de local melhor, se assentou no topo da arquibancada lotada. O ato é acompanhado por um muxoxo geral e a reação de outro personagem, que em luta corporal tenta desarmar o malfeitor, gera um remexer de ancas nos assentos de tábua, numa agitação quase silenciosa. A cena se resolve e, como se ninguém sob a lona daquele circo soubesse, o bem triunfa sobre o mal. O garoto, oculto entre as pernas dos pagantes, não tem tempo para viver tão intensa emoção, esta que, por vezes fazia algum incauto desabar do “poleiro” após súbito desmaio. Ele esperava apanhar a cena de picadeiro em que o palhaço, vestido de mulher, com a roupa colorida por baixo, levanta a saia e solta um gemido jocoso, enxugando lágrimas invisíveis com a bainha levantada sob a trovoada de gargalhadas da platéia. Mas aquele era o dia do drama, embora também tivesse palhaço. No entanto, não só para ele, mas para cada alma pagante que preenchia aquela arquibancada, a encenação, fosse ela séria ou cômica, reunia toda a emoção que alguém poderia viver além da vida cotidiana. Repleta de imagens e situações pungentes, as cenas do circo-teatro podiam tanto suspender a respiração do espectador, quanto fazê-lo explodir em risos, pois elas ofereciam a matéria-prima da vida, que, teria dito um certo bardo, também era a dos sonhos."
Nenhum comentário:
Postar um comentário