quarta-feira, 20 de julho de 2011

Fellini e seus palhaços

Mencionei outro dia aqui o filme I Clown (Os palhaços), de Federico Fellini, o mestre do cinema italiano. Meio documentário, meio ficção - como tudo o que Fellini fez, entendendo-se por documentário uma "coleção de referências autobiográficas" - o filme tem o mérito de resgatar os velhos palhaços italianos e europeus, contando um pouco de sua história para se encerrar com uma grande entrada circense, que ocupa os vinte últimos minutos da película, da qual participam, talvez, mais de três dezenas de palhaços. A fita foi realizada sob encomenda da televisão italiana em 1971 e nela encontramos ainda, além do diretor em plena ação, a musa ícone de Fellini, Anita Ekberg, que fez La Dolce Vita, junto com Marcelo Mastroianni, ser o filme que é na história do cinema. Assim como o final antológico, o início da fita é marcante por revelar, de cara, que o universo circense não se restringe ao picadeiro nem à lona do circo. Um garoto acorda no meio da madrugada com o barulho que vem do largo de sua vila rural. Sobe numa cadeira, abre a janela e se depara com a lona do circo sendo levantada, como se emergisse da terra e se inflasse na imaginação do garoto. Naquela mesma noite ele irá ver os palhaços e sairá chorando de medo - algo comum às crianças que tomam esse contato imediato com os arquétipos de seu inconsciente. Naquela noite, quando se prepara para dormir, faz uma preciosa reflexão: “Aquela noite acabou mal. Os palhaços não me fizeram rir e, sim, me assustaram. Aqueles rostos de gesso, expressões indecifráveis, aquelas máscaras retorcidas, os gritos, risadas, as piadas atrozes, me lembravam outras figuras estranhas e inquietantes que vagavam por cada aldeia do campo...” A partir daí Fellini enumera uma série de cenas em que personagens populares agem claramente como palhaços, encarnam, dispensando a pintura facial, o arquétipo do humor grotesco, daquele que vê o mundo pelo avesso, a partir de uma lógica toda própria. Enfim, uma das percepções mais acuradas do espírito circense. Fellini retoma o circo na sua Entrevista (1987), seu testamento cinematográfico, em que passeia pela Cinecittà decadente e é apanhado por uma inesperada chuva. Fellini e sua equipe fogem e se refugiam num circo abandonado, onde, logo depois, são surpreendidos pela bandinha de palhaços, de modo que a fita se encerra com um "retorno ao mundo" (o círculo do picadeiro é uma grande metáfora do mundo). Ele próprio, Fellini, é um clown disfarçado, oculto atrás de sua cara limpa, rindo para a plateia e arrancando dela um riso de alma, a ponto de lavá-la e prepará-la para retornar às luz da rotina.
Segue um trecho de quatro minutos do Funeral do palhaço, a tal cena final, em que um luxuoso clown dispara um discurso nonsense sobre o palhaço morto, enquanto desfilam todos os tipos do humor circense imagináveis, caras brancas, excêntricos, campônios, mestres de pista, etc.

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