quinta-feira, 7 de julho de 2011

Existe sertanejo de raiz?

Há um ponto que venho batendo desde que escrevi o livro Moda Inviolada - Uma história da música caipira que diz respeito à nomenclatura do gênero musical empregada pela indústria fonográfica e, na esteira, pelos meios de comunicação em geral. Criaram, numa certa altura, o nome "sertanejo" para identificar a música que teve origem na formação de duplas com afinação diferenciada e, a princípio, munida de violão e viola. No entanto, até a década de 1950, esse tipo de música se chamou caipira. O fundador do gênero dentro da indústria fonográfica foi Cornélio Pires, que em 1929 gravou o selo vermelho na gravadora Columbia com sua Turma Caipira. Nas duas décadas seguintes o gênero se consolidou e até sofreu influências de ritmos estrangeiros, nunca deixando de se chamar caipira. Cascatinha e Inhana era uma dupla caipira, embora só gravassem guarânias (gênero de origem paraguaia). Outras duplas, influenciadas pelos ventos daquele país, incorporaram o rasqueado (trazido ao Brasil por Raul Torres) e até a polca paraguaia. O cinema do pós-guerra trouxe ainda a influência do corrido mexicano de Pedro Vargas, que muitas duplas abraçaram fragorosamente sob o espírito da política de Boa Vizinhança promovida pelos Estados Unidos, e passaram até a verter sombreros e ponchos, entre eles Pedro Bento e Zé da Estrada. Sem deixar de ser caipiras. Mas em meados dos 1940 um fenômeno balançou a música brasileira, tocada no rádio e vendida em disco: Luiz Gonzaga, o legítimo sertanejo, empunhando sua sanfona e consagrando gêneros desconhecidos, inclusive criações próprias, como o baião, ritmo retirado do ponteado da viola de repente e transladado para o acordeão, acompanhado de zabumba e triângulo. A partir daí tudo queria ser sertanejo, e, de fato, se tornou o nome que a indústria fonográfica procurava para abrigar tudo aquilo que se tratava de música regional, inclusive a caipira. Biá, que fazia dupla com Palmeira, correu e registrou o gênero, inaugurando-o com o abolerado Boneca cobiçada. Daí por diante, instituiu-se o "sertanejo", gênero que abrigou inúmeras outras influências estrangeiras, a mais marcante a do rock aclimatado (leia-se iê-iê-iê), incluindo o uso do trio guitarra-teclado-bateria. Mas aí o tempo passou, o "sertanejo" se consagrou de forma hegemônica, e a música caipira seguiu no mesmo passo, mantendo a tradição inaugurada por Cornélio Pires. E num belo dia as duplas sertanejas, envoltas pelos pastiches que elas próprias criaram, se lembraram que a base de tudo aquilo que faziam era a boa e velha música caipira. Para não reavivar o nome do gênero, a indústria fonográfica, pródiga em eufemismos - note-se isso no recente "sertanejo universitário" - se saiu com o tal "sertanejo de raiz". Para os que conhecem a história da cultura caipira, o termo é uma piada pronta, como diria o jornalista José Simão... Antonio Candido revelou, em sua pesquisa sobre a sociabilidade do caipira, que este é obrigado a se locomover da terra constantemente, expulso pelos proprietários, para buscar novas paragens e continuar plantando e sobrevivendo. Tal característica o tornou uma verdadeira fronteira móvel entre a terra desbravada e a ainda por desbravar. Isso lhe deu traços de personalidade, entre eles o da provisoriedade. Ou seja, está sempre pronto para partir, não criando portanto raiz. E lá vem a indústria e tasca: "sertanejo de raiz"! Tem algum sentido chamar Tonico e Tinoco, Cacique e Pajé, Tião Carreiro e Pardinho, entre outros, disso daí? Replico o refrão de Zé Mulato e Cassiano em Navegantes das Gerais: "Se me chamam de caipira/fico até agradecido/Pois falando sertanejo/eu posso ser confundido..."

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