quarta-feira, 9 de março de 2011

O palhaço Chupeta

"Vesti a roupa do palhaço Chupeta e fiquei no pequeno apartamento que o palhaço Alface alugava em frente ao Coliseu. O meu amigo tinha inventado uma roupa que imitava uma cenoura, mas Chupeta contruíra para si um bebê: uma fralda ridícula sobre um calção largo, um gorro com orelhas de coelho e uma mamadeira na mão. Do nariz vernelho pendiu uma gota de lã, imitando muco... Foi impressionante assistir ao ritual de transformação do cavaleiro decente, que havia falado comigo no café, num palhaço cor de laranja. Eu tinha a impressão de estar diante do renascimento de um deus antigo. Esse personagem mítico ajudou-me a me vestir e a me maquiar. À medida que vestia a fantasia, meu eu ia desaparecendo. Minha voz também não poderia ser a mesma,assim como meus movimentos. Eu também não poderia pensar da mesma maneira. O mundo havia recuperado a sua essência: era uma piada absoluta. Meu aspecto exterior desmanchava-se diante do aparecimento daquele menino grotesco que me dava liberdade para agir sem repetir aqueles modos impostos que tinham se transformado na minha personalidade. (...) Ao transformar-me em Chupeta, só me restou a euforia, a angústia sumiu junto com minha pessoa. Mais uma vez pude perceber que aquilo que pensava ser era uma deformação arbitrária, uma máscara racional que flutuava numa sombra interior infinita e desconhecida."
(Jodorowski, Alejandro. A dança da realidade. Devir Livraria, São Paulo, 2009, p. 136)

A narrativa autobiográfica de Jodorowski dá pistas de como o diretor, escritor, autor de HQs, leitor de tarô e xamã sintetizou a experiência circense no filme Santa Sangre (1989). Fantasiar - e dançar - para alcançar a verdadeira realidade e dela abstrair a imaginação como forma de apreender seu potencial transformador: eis a direção.

Um comentário:

Paulo Pepe disse...

Fantástica narrativa de transformação.
Isso me faz pensar que , as vezes, o ego atrapalha, e muito, a evolução o ser.

Pp