sexta-feira, 16 de março de 2012

O demônio na fábrica

Outro dia prometi falar sobre uma das mais brilhantes  investigações sociológicas que conheci - a outra é sobre as narrativas da vida de Cristo, por Oswaldo Xidieh - que é o caso do aparecimento do demônio na Cerâmica São Caetano na década de 1950, por José de Souza Martins. O acontecimento foi relembrado pelo autor na década de 1990, quando então foi atrás dos operários remanescentes que pudessem contar outros detalhes sobre o caso. A ele: várias operárias, num certo dia, desmaiaram sem motivo aparente e, ao recuperarem a consciência contaram ter visto o demônio a espreitá-las num dos cantos da fábrica. Para que os fatos fossem estancados, a direção da cerâmica chamou o padre da paróquia local que rezou uma missa e benzeu as instalações da fábrica, espantando o dito cujo. O sociólogo vai, então, tentar compreender as circunstâncias que cercaram o caso. Descobre que ele se deu num período de troca de tecnologia de produção, de substituição dos velhos mestres artesão por engenheiros que impuseram um novo ritmo de produção a partir da instalação de dois novos fornos de queima dos ladrilhos em cerâmica. As mudanças se deram na linha de produção, e as mulheres trabalhavam no final da linha, separadas do processo, selecionando os ladrilhos defeituosos para o descarte. Ouvindo o zum-zum-zum incerto do que ocorria "lá dentro", passaram a viver momentos de insegurança ao perceberem que a produção estava cada vez mais defeituosa - resultado da fase experimental dos novos fornos - o que as colocou em profundo estado de estranhamento. Como a maior parte delas tinha uma origem rural e religiosa, a insegurança fez emergir do imaginário a figura do demônio. A conclusão aqui parece simplista, mas o sociólogo se valeu da sua condição de contínuo, que circula por todas as seções, para compreender e juntar os "cacos" da história e chegar à interpretação. O mais interessante é entender como ele toca as contradições da sociedade industrial, o que vale ler o texto na íntegra, disponível no site da revista Tempo Social, e também em livro (editora 34, São Paulo, 2008). Um mergulho sociológico impressionante, que considera tanto a cultura popular quanto a religiosidade e a cisão que vive o sujeito na sociedade moderna.

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