terça-feira, 25 de outubro de 2011

A comicidade grotesca do palhaço

Recebi ontem, do professor Ferdinando Martins (ECA/USP), também vice-diretor do Teatro da Universidade de São Paulo (TUSP), a bela revista aParte XXI número 4, que traz um artigo que escrevi a seu pedido, com o mesmo nome deste post. A publicação foi lançada mês passado e é dedicada à comédia, com artigos sobre o stand up (Sérgio Rizzo e Luiz Roberto Zanotti), humor brasileiro (Welington Andrade) e Salão de Humor de Piracicaba (Adolpho Queiroz). Para que o leitor do blog não fique curioso, reproduzo a primeira parte do artigo, que fala de como os palhaços que foram para a televisão atenuaram o humor grotesco que é a essência do palhaço excêntrico (na foto, Hugo Possolo e Raul Barreto, dos Parlapatões):

            Ninguém verá a malícia da cena registrada tanto no Tico-tico no Fubá, filme de Adolfo Celi de 1952, quanto no Sua Majestade Piolin, de Suzana Amaral, de 1971. Mas quem teve a sorte de ver o palhaço Piolin no picadeiro do seu circo encenando a entrada “Idílio dos sabiás”, confirma: no momento em que o clown Pinati assedia, usando somente assovios, a “passarinha” representada por um Piolin travestido, há um determinado momento em que ele convida-a para um passeio de charrete. Usando mímica, coloca as duas mãos fechadas à frente do corpo e balança-as lentamente, como se segurasse as rédeas dos cavalos. Piolin passarinha, desconfiando, repete o movimento e, de repente, em vez de só balançar as mãos, puxa-as para si violentamente, várias vezes, num gesto obsceno. Arisca, como requer a uma passarinha, levanta o indicador e sinaliza: “Não, não, não!” Ela só cede quando o passarinho galanteador lhe promete casamento. Aí ela se enrosca no braço do clown e ambos saem assoviando a marcha nupcial. Sobre a cena, Ayelson Garcia, neto de Piolin – filho de Ayola Pinto com Nelson Garcia, o palhaço Figurinha – logo esclarece: “Meu avô era palhaço de adulto, não de criança!” Uma confirmação natural, pois era comum aos palhaços que se apresentavam nos picadeiros dos mais de oitenta circos que passaram por São Paulo entre 1930 e 1970, atuar a partir dessa comicidade. Mas sempre recorrendo à mímica ou à insinuação, nunca de forma escancarada.
No entanto, hoje prevalece uma máxima romântica, popularizada, talvez, pela imprensa.

Uma das bobagens que costumamos repetir com entusiasmo: ‘enquanto houver uma criança, o circo não morrerá!’ Como se o circo fosse privilégio de crianças. Como se, muitas vezes, consciente ou inconscientemente, delas não nos servíssemos para, indo levá-las ao divertimento, podermos matar nossa fome desse espaço arquetipal convergente, descoberto na infância, é verdade, mas que nos acompanha a vida inteira como um reduto inexpugnável onde podem persistir nossos impossíveis desfeitos.
 
            A afirmação é de Miroel Silveira, pesquisador que hoje empresta seu nome ao arquivo que reúne 1.080 processos de censura sobre peças de circo-teatro e que se encontra na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Certo que a comicidade do palhaço, baseada no humor grotesco, que tem sempre como temática principal o “baixo corporal”, foi “ajustada” quando esta se transferiu para os meios de comunicação de massa, em especial a televisão. Arrelia (Waldemar Seyssel), que atuou por décadas no circo da família – o Circo Seyssel e o Circo Piolin foram as duas lonas fixas que por mais tempo atuaram em São Paulo, a primeira no Largo da Pólvora e a segunda nas proximidades da Praça Marechal Deodoro – quando estreou na TV Record em 1953, montou uma lona no pátio da emissora, onde via a arquibancada preenchida por dezenas de crianças. Mesmo adaptando as comédias que levava no circo para a televisão, amenizou o humor grotesco, embora continuasse subvertendo a ordem, que é a função de existir do tipo excêntrico. Ajustou-se ao novo meio, enfim. Assim como Piolin atenuou a sua passarinha para o cinema.

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