Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.
Manoel de Barros
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.
Manoel de Barros
Walter de Sousa
Manuelzito cruza o terreiro, pés no chão de barro, curvando o torso e baixando-se para escapar às asas abertas da arara una. Do outro lado do curral, Dona Helena, próxima da árvore da guavira, espreme os olhos e acompanha o movimento dos dois avoadores. Ele, menino arreliento; ela, ave grande – tão grande que não cabe no buraco da viola, só no oco do manduvi – que arrodeia, arrodeia, e acaba atracada às costas do menino. Manuelzito ri. A ave enrosca o bico adunco à volta do seu pescoço e, dependurada, tenta se ajeitar, descerrando as asas, transformando o moleque em anjo de procissão. “Esse pé dá guavira?”, ele grita, enquanto ri para a ave. Dona Helena não responde. Aperta mais os olhos e tenta ouvir o azul da arara. As dez cordas da sua viola estão flácidas, imóveis. Lá dentro pousam o guaxo, a araponga, o bem-te-vi, o pequenino tico-tico. Montam ninho e avoam na vibração das cordas. Dona Helena não ouve asas batendo, pois está ocupada em apurar os ouvidos. Quer o azul da arara. Engole em seco e sente a poeira na garganta. Uma poeira de estrada, de boiada. Alaranjada, silenciosa, que vagueia pelo ar, e acaba na pele. É quase a sua vida errante, não fosse a viola e não fosse a possibilidade do azul.

“Tô vendo uma! Uma guavira!”, tripudia o garoto, apontando para o nada, gracejando para a ave. “Pega lá! Pega lá!” O bicho se faz imóvel, abre o bico solenemente e devolve um gracejo maior. Replica com o ruído que lhe dá nome. “Arara rara, rara arara.” Manuelzito remeda, em sonoridade rascante. “Nem isso é língua de ave, é feitiço”, retruca silenciosamente Dona Helena.
Então, no oco da memória, ouve berrante, ouve conversaria, ouve palavreado, tiro, palavrão. Uma estrada vincada, entre a água e a terra, o peso do passo da boiada, a caminho da morte. Nela viu pássaros, mas não ouviu o azul. O mesmo azul que o menino ouve. E canta.
A arara, por sua vez, com seu olhar consciencioso, vê cada um com um olho: Dona Helena e Manuelzito. E sintetiza, na impossibilidade que lhe deu asas, a sonoridade do que não é pássaro e nem é azul.
(A pedido do editor Ricardo Oliveira, da Quiron, que publicou o Moda Inviolada, escrevi este conto para um livro sobre animais em extinção. Cada região do Brasil contou com análise específica dos riscos envolvendo o desaparecimento das espécies, acompanhada de um texto de ficção. Ricardo, diante da ausência de textos sobre a arara azul me pediu algo que envolvesse a violeira Helena Meireles. Imaginei um encontro literário entre ela e o poeta Manoel de Barros. Tempos depois, conversando com o Milton Araújo, sobrinho de Helena, descobri que havia um encontro marcado entre os dois que nunca aconteceu: a violeira se foi antes. O conto está no livro Arca Brasileira - Uma viagem pelo Brasil e seus animais, e a foto do post é de Andy e Gill Swash).
(A pedido do editor Ricardo Oliveira, da Quiron, que publicou o Moda Inviolada, escrevi este conto para um livro sobre animais em extinção. Cada região do Brasil contou com análise específica dos riscos envolvendo o desaparecimento das espécies, acompanhada de um texto de ficção. Ricardo, diante da ausência de textos sobre a arara azul me pediu algo que envolvesse a violeira Helena Meireles. Imaginei um encontro literário entre ela e o poeta Manoel de Barros. Tempos depois, conversando com o Milton Araújo, sobrinho de Helena, descobri que havia um encontro marcado entre os dois que nunca aconteceu: a violeira se foi antes. O conto está no livro Arca Brasileira - Uma viagem pelo Brasil e seus animais, e a foto do post é de Andy e Gill Swash).
Um comentário:
Lindo.
Pp
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