domingo, 10 de abril de 2011

Circo e literatura: Cidades mortas, de Monteiro Lobato (1919)

"Afinal começava a função e o palhaço entrava como um bólide, rolando às cambalhotas. Tão engraçado!... O relógio dos fundilhos do calção marcava meio dia. Na cabeça, inclinado para a orelha, o chapelinho de funil, microscópico. Bastava ver o palhaço e Lauro desandava a espremer risos sem fim. A cara caiada, as enormes sobrancelhas de zarcão, os modos, a roupa, tinha tudo muita graça... (...) Vinham depois os trabalhos. Não gostava. O arame, que caceteação! O trapézio, maçante... Mas gostava dos cavalos porque com eles reaparecia o palhaço mais o Tony... Oh, como era bom quando havia Tony! A gente estava distraída e de repente plaft! Que foi? Foi o Tony que caiu! E cada tombo... (...) A pantomima! Era o melhor. Os Salteadores da Calábria, A Estátua de Carne... E a Maria Borralheira? Vira-a duas vezes, e nunca havia de esquecer aquele desfile de figurões históricos – Garibaldi de muletas, o general Deodoro, Napoleão...
Suas recordações estavam em Napoleão, quando Lauro chegou à praça onde zumbia o circo. Reviu a clássica barraca iluminada por dentro, deixando ver, desenhada no pano, a silhueta dos espectadores repimpados nos bancos de cima. Em redor, tabuleiros com lanternas dubias a alumiarem as cocadinhas queimadas, os pés-de-moleques, os bom-bocados; as mulatas gordas ao pé, vendendo; os baús de pastéis, cestas de amendoim torrado, balaios de pinhão cozido. E, grulhantes em torno, os pés-rapados de bolso vazio, que namoram as cocadas, engulindo em seco, e admiram com respeito os "peitudos" que chegam à bilheteria e malham na tábua um punhado de níqueis, pedindo com entorno:
- Uma geral!
O encanto de tudo aquilo, porém, estava morto, tanto é certo que a beleza das coisas não reside nelas senão na gente."

(O conto Cavalinhos é de 1900, quando o autor ainda não havia publicado nem se notabilizado pelas duas cartas que enviou ao jornal O Estado de S. Paulo denunciando o "piolho da terra", depois chamado Jeca Tatu. O conto da juventude de Lobato tinha por subtítulo: "Fragmento de um romance gorado". Lauro reencontra a sua criança sob a lona do circo: o que foi e o que revisitava.Para então concluir que a beleza das coisas não reside nelas senão na gente. Além de ser um importante registro do circo em sua fase mais áurea, é também um conto que ressoa em seu desfecho a mais fina literatura.)

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