segunda-feira, 14 de março de 2011

Sobre caipirices e brunas surfistinhas

Querido Danilo Okamoto, demorei umas boas semanas, incluindo o Carnaval para responder o seu artigo desabafo condenando o filme Bruna Surfistinha, que estreou no último dia 25 de fevereiro e que no dia 9 de março já havia angariado 1 milhão de pagantes, o que soma uma arrecadação de R$ 9 milhões. Por mais incrível que pareça, se trata de adaptação de um livro, de autoria da ex-garota de programa Raquel Pacheco, O doce veneno do escorpião. Não precisei ler o livro e muito menos ver o filme para saber a saga completa da moça, pois a mídia se incumbiu de me informar antes. Compreendo a sua revolta, expressa no artigo em que cita o conceito de indústria cultural de Adorno e Horkkeimer, filósofos da chamada Escola de Frankfurt, ou escola crítica. Argumenta: “Esta mulher só teve espaço na televisão aberta quando escreveu seu livro porque traz consigo o tabu do sexo, e a mídia usada por ela (editora de livros, emissora de televisão) precisa desse tipo de conteúdo alienante para se sustentar.” Devo alertar que sexo e violência sustentam muito a audiência de diversas manifestações da mídia não por serem característicos à indústria cultural, mas por suscitarem dilemas na natureza humana, explorados de maneira rentável pela mídia. Sem cair no julgamento moral da história e da estória, prefiro usar o conceito de cultura de massa para complementar a sua análise. O motivo é simples: em se tratando de indústria cultural, pressupõem-se um papel nulo do chamado receptor, sendo meramente manipulado pelos meios de comunicação. Claro que não seria ingênuo de defender que não há manipulação. Mas compreendo o processo cultural como sendo uma arena de negociação simbólica. Ou seja, apresentam-se produtos culturais que recebem ou não a adesão do público. No caso do filme, houve adesão de pelo menos 1 milhão. É o processo de hegemonia, no sentido dado por Gramsci. Jesús Martín-Barbero acredita que, nesse processo, há certas brechas. Ou seja, a cultura popular, por exemplo, pode emergir da cultura de massa, desde que certos aspectos referentes a ela se tornem hegemônicos. Defende você que o Ministério da Cultura invista num produto que tenha Cornélio Pires ou Tonico e Tinoco como tema. Serei o primeiro na fila se isso se concretizasse. Mas ressalvo que a “lógica” da cultura de massa, que alia hegemonia e poder, trabalharia ao jeito dela esse produto. Veja, por exemplo, o filme 2 Filhos de Francisco. Certo, o tema vem da cultura de massa, a música sertaneja (que difere bastante da música caipira, como bem sabe). Mas o filme teve de falar do campo simbólico em que formou essa música. Quem estava na trilha do filme? Tristeza do Jeca, do genial Angelino de Oliveira, grande hino caipira! Mas... interpretado por... Maria Bethânia e Caetano Veloso!!! Este último, aliás, sintetiza o esforço musical em mediar cultura popular e de massa (que os americanos chamam de cultura pop). Aviso que há formas mais claras de não só criticar a mídia, mas de abrir brechas no seu discurso. Os nossos amigos violeiros do Caipirapuru, são um belo exemplo. Não gostam de chamar seu movimento de “resistência cultural”? Mas o que fazem senão resistir ao discurso da mídia, respondendo com criatividade e farta base cultural ao mesmo tempo que usam os meios dessa mídia? Quanto ao debate crítico, aqui estamos, na blogosfera, disseminando essa nossa discussão da qual todos estão convidados a participar...
Em tempo: Tonico e Tinoco produziram, do próprio bolso, alguns filmes nas décadas de 1960 e 1970: Lá no meu sertão (1961), Obrigado a matar (1965), A marca da ferradura (1969), Os três justiceiros (1971), Luar do Sertão (1972). Apesar da insistência, não obtiveram público suficiente para que alcançassem ao menos o retorno do investimento. Perderam muito dinheiro, o que abalou as finanças da dupla pelo resto de suas vidas.

6 comentários:

Anônimo disse...

É Walter, vejo sentido quando você diz que a lógica da cultura de massa exerceria poder e hegemonia em um produto que levasse como enredo os principais artistas da música caipira... Mas creio mesmo exercendo poder e hegemonia, nosso intelecto seria contemplado com as histórias e os contextos políticos e culturais que acompanharam cada um destes expoentes. As pessoas poderiam sair do cinema com vontade de ler mais sobre a república do café com leite, a semana de arte moderna, sobre o legado literário de Cornélio Pires, ou até ler o seu livro, que eu tanto gosto, e conhecer mais sobre a colonização do Brasil, a história da música caipira... O que me revolta é a pobreza de conteúdo, assim como a maneira fútil que história da meretriz foi colocada no filme. Mostrando um pessoa que "deu certo na vida", e por meio do sexo conseguiu dinheiro e destaque. Mas admito a minha culpa enquanto pesquisador. Todos nos que pesquisamos esta área também deveriam admitir. Cabe a nós escrever projetos e buscar junto ao ministério da cultura apoio para produzirmos filmes que fomentem o que eu sugeri a cima. O que me diz sobre darmos a este filme uma resposta a altura? Topa?

Cará Pinhé disse...

Danilo, desde que te conheci você está sempre me desafiando a fazer mais pela música caipira e isso tem sido um imenso prazer pra mim! Vamos sim dar uma resposta à altura! Grande abraço!

Paulo Pepe disse...

Instigante discussão.
Às armas!
"Só brigo se for cantando, vamos cantar macacada!"

Pp

Cará Pinhé disse...

Ontem, conversando com o Danilo pelo telefone, ela me fuzilou: "A culpa é nossa! Nós é que não fazemos nada e aí eles vem e lançam qualquer coisa!" Pois é... faz sentido!

Nilson R. do Nascimento disse...

Pois é confesso que ao ler os dois artigos fiquei sem saber qual viés tomar: o sentido vulgar de se lançar um filme apelativo ou de se tentar mostrar o outro lado da cultura de resistência. Pois prara mim o nosso povo é levado por vários caminhos a não aceitar a nossa cultura popular que tem raízes profundas neste mundo escondido e de poucos(caipíra), que minha falta de informação me mostrasse se estou errado. por favor voces estão com a palavra.

Cará Pinhé disse...

Nilson, sempre há as brechas... Mencionei os violeiros como exemplo porque eles estão conduzindo um movimento político para conseguir espaço na mídia sem o apoio da indústria fonográfica, mais interessada nos cifrões do que na cultura. E estão conseguindo! Então, há ainda possibilidades! Abraço!