terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

É mais sortudo do que cobra no cacete!

A bicha invadiu o chão batido da cozinha e Tião apanhou logo um cacete. Mas não é que, embora caceteasse a cobra, ela se torcia e desviava, pulava do chão e saía da mira do porrete que nem era muito forte, tanto que partiu na segunda investida, acertando só o rabo de osso da cobra. Ela continuou pulando e se enfiou mato adentro, sem pestanejar, ligeira. Pois não é que a bicha não fala, mas é inteligente. Não foi um outro dia quando Tião tomava banho de rio com os primos e a bicha estava lá, esperando o devedor, que ela logo reconheceu. Os primos, ao voltarem pela picada, já caindo a noite, carregavam os calções molhados e pouca bagagem. Passou o primeiro, o segundo, o terceiro, e quando Tião passou, ela pulou e fincou os dentes na perna dele. No escuro, ele só sentia a bicha rabeando, contorcendo para instilar o veneno, como se sentisse dor maior que a de Tião, se debatendo, enquanto o moço gritava para os primos que, assustados, riscavam os fóscos para tentar ver a cobra se torcendo. Mas não é que o Miguelinho, corajoso, aproximou o lume do fósco da cabeça da bicha, agarrou o pescoço dela com os dedos em pinça e, apertando, a fez soltar a perna de Tião. Com jeito, foi escarafunchando até que as presas se liberassem, com a cobra rabo de osso demonstrando estar sendo consumida pelo esforço da maldade de devolver a porrada com a dentada. O primo jogou a cobra no mato, que continuou se contorcendo, prestes a gastar no esforço as últimas voltas de uma vida rastejante. Sim, ela tava morrendo, pois já havia colocado todo o veneno na perna do devedor e para ela isso bastava. Saíram os primos arrastando Tião, já em febre e olhos virados, até a casa da madrinha. Lá, mandaram chamar dona Toinha, que chegou com o bauzinho de macaúba, fechadinho com trinca e chave pequena escondida no punho esquerdo da benzedeira. Carregando a caixa de madeira com cuidado, depositou-a no pó do chão, perto do coitado despojado, fez a chavinha aparecer, encaixou e girou. Lá dentro estava a pedra. Era simples, sem brilho nem nada, como essas pedrinhas de fogo, redondinha. Não se podia tocá-la. Toinha apanhou uma colherinha e caçou a pedrinha na caixa. Olhou para a ferida de Tião, sangrando, e, com cuidado, foi entranhando a pedrinha no buraco deixado pela bicha. Lá aconchegou e avisou que lá deveria ficar por três dias e três noites. Ninguém deveria colocar a mão em nada, pois o veneno seria chupado pra fora. Iria verter, em silêncio, até afastar o risco da morte. E olha que não era veneno de cascavel ou de coral, mas da danada do rabo de osso, a jaraguçu. Pois em três dias a pedra caiu. Avisaram Toinha que foi lá, apanhou com a colher, colocou no fundo de uma lata e levou de novo para a caixa de macaúba. Tião levantou, tava bom, só precisava esperar os buraquinhos fecharem. Os primos não acharam mais a jaraguçu. Deve ter morrido no mato. Teve sorte no cacete, mas entregou-a à vingança. Nela colocou seu motivo de viver. Sorte mesmo teve o Tião, que já estava lá, no tapiti, buscando farofa de caroço para beliscar.

(Essa jóia de história foi contada pela D. Maria, piauiense de Picos que vive em São Paulo há décadas. Contou-me os detalhes depois que lhe perguntei de onde vinha a frase que serve de título ao post. Aos que buscam satisfação ao executar vinganças - com juros - é uma boa metáfora.)

Um comentário:

Anônimo disse...

Belíssimo causo.
Viva a D.Maria!!