segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Por que a música de viola é caipira e não sertaneja?

(Escrevi este artigo ainda no século passado, para um site dedicado à música caipira e aqui o reproduzo tal e qual. A viola da foto é do Braz da Viola, de São José dos Campos.)

O velho caipira, sentado diante da sua palhoça de telha-vã, ouvindo o canto triste do passarinho “desde o galho onde ele está”, alheio ao tempo, jamais poderia um dia imaginar o que seria a Internet. No entanto, ele está lá: olhando o passarinho e também na Internet. Como assim? De que forma o caipira teria adquirido essa atemporalidade?
Para começar a refletir essa presença duradoura, é preciso relembrar quem é o caipira para, então, descobrir o que identifica a sua cultura. E, enfim, encontrar o que perdura disso hoje nas violas e nos violeiros. Filho do índio e do colonizador branco, que trouxe de Portugal o seu falar, suas crenças e sua viola, o caipira permaneceu, como assinala Antonio Candido, uma espécie de fronteira móvel entre a natureza e a civilização. É esta, aliás, a maneira primeira em que o caipira aparece como fronteira. Após a passagem do bandeirante, ele desbastava a mata do bugre, ocupando a terra. Em seguida, era expulso pelo civilizador, que lhe usurpava a terra, tornando-a produtiva. Ou mais, transformando-a em vila.
Como a vida do caipira foi sempre permeada por esse “se estabelecer e ser expulso da terra que não é sua”, ele acabou incorporando o “provisório”, marca característica já do índio e do sertanista bandeirante. Sua casa, seus pertences, seu trabalho na terra, foram marcados pela provisoriedade. Tanto que acabou incorporando-a ao seu próprio modo de vida. Por isso ele pouco canta o amor à terra, como faz o nordestino. Canta sim, a terra que produz, a terra que corre sob os pés da boiada, que serve de palco para verdadeiras epopéias de caboclas Teresas, Chicos Mineiros ou Mulatos, dentre outros personagens.
Prova do desapego originário da provisoriedade está num dos mais fiéis resumos do “ser caipira”: a delicada toada de Renato Teixeira e Almir Sater, “Tocando em Frente”:

            “...Como um velho boiadeiro tocando a boiada
            Vou tocando os dias nessa longa estrada eu vou,
            Estrada eu sou.”

O caipira soube sintetizar a miscigenação na criação de uma arte peculiar, baseada na religiosidade das festas populares e escrita com as dez cordas da viola. O exercício da viola nasce, a princípio, no ato contrito de tocá-la para Deus e para os santos. Principalmente se esse santo for violeiro, como é o caso do São Gonçalo brasileiro, porque o de Amarante, mesmo, só sabia fazer pontes e casar as velhas. Para o caipira, tocar a viola é uma maneira profunda de rezar, ao passo que a dança consagra uma promessa. O violeiro toca em atitude reverente, uma reverência nem sempre evidente se para o santo ou se para a própria viola.
Todas essas características (impermanência, provisoriedade, transição) que surgem na música folclórica, se fixam na chamada música caipira. Ou seja, na música gravada, a partir de 1929, pelo esforço de Cornélio Pires e que haveria de encontrar um público admirador crescente a ponto de fazê-la popular pelas três décadas seguintes. Isso porque, na virada dos anos 1950 para os 1960, ela se misturaria com as guarânias paraguaias e as rancheiras mexicanas, numa fusão que a descaracterizaria gradualmente. Até que, enfim, ela passou a incorporar, já nos 1970, as guitarras elétricas e, no dinal do século XX, elementos do country norte-americano. Assim, a música caipira, embora fruto dos meios modernos de reprodução – o disco e o rádio – figura, também, como uma fronteira entre a genuinidade do folclore e a desfiguração promovida pela cultura de massa
Isso não implicou, de forma alguma, no desaparecimento completo da música caipira. Ao contrário, fortaleceu-se também lentamente uma certa resistência violeira, que manteve a essência da Alma caipira, suas metáforas e seus acordes característicos. São violeiros que refutam a forma estereotipada da música “sertaneja” e vão buscar na música caipira – e não “música raiz”, pois caipira pode ter tudo, menos raiz – a verdadeira cara de uma cultura genuína e estruturada.

Nenhum comentário: