sexta-feira, 3 de junho de 2011

O que aconteceu com o "coisa ruim"?

Num artigo para a revista Planeta de maio de 1974, Oswaldo Xidieh, sociólogo e pesquisador da cultura popular descreve o coisa ruim quando este desembarcou no Brasil em 1500:

"Com seus chifres, seu rabo, sua corcova, seus pés de bicho, suas asas de morcego, sua cor, seu fedor de enxofre, sua morrinha de cão, seu bodum de nego fulastra, seu pitiú de maloqueiro, sua cantiga de estoraque. Com aquela capa preta, mal escondendo um sexo impossível e aquele forcado de três pontas com que azucrina as almas danadas. Voa pesadamente e, ao caminhar, saltita ou espicha os passos como o urubú. Garras em lugar de unhas, couro em lugar de pele, duras ferpas de porco em lugar de cabelo. Hipócrita, mentiroso, traiçoeiro, labioso, corrupto, maligno, trapaceiro, mestre de todos os vícios, sabedor de tesouros enterrados e de mil disfarces para enganar até os santos. Gosta de fandangos e toca viola. Apossa-se dos vivos e, às vezes, de certos animais de sua preferência como os porcos e os cães pretos. Adora os lugares baldios, as casas abandonadas, as grotas, as estradas de pouco trânsito e os lugares sagrados que foram profanados. Companheiro constante dos bêbados, das prostitutas, dos ladrões, faz ponto, quando em atividade, nos botequins, nos bordéis e nas cadeias ou, então, ronda pelos lugares onde se cometem crimes e se executaram criminosos e feiticeiros. Tudo isso para uma coisa que hoje nos parece inglória: perder o homem . . ."

Mas, assim como tudo que foi importado culturalmente do colonizador, aqui o próprio diabo foi sendo domesticado, adaptando-se a crenças outras que não as cristãs, sempre perdendo seu poder maligno. A chegada dos negros, que trouxeram seus orixás, deu novo trabalho à Igreja, que reconheceu o tar no Exu que, para os negros, pode agir tanto para o bem quanto para o mal. No cordel, então, ele passou a ser o eterno jogador em pelejas que sempre sai perdedor, seja para Lampião ou para Bin Laden... Xidieh aponta o golpe final: o espiritismo, que traz a possibilidade de "evolução" do cão, a ponto dele expiar suas culpas e pecados e ser encaminhado a Deus pelos bons espíritos. Mas não acaba aí o calvário do diabo:

"Alguma coisa nova está para lhe acontecer.  Temos constatado, esporadicamente, numa ou noutra tenda de umbanda, a presença de imagens de deuses japoneses. Colocam-se nos pejis ou em mesinhas ao lado. Não se sabe bem o que fazer com eles, mas vão sendo aceitos. E, como não poderia deixar de acontecer, nos recantos dedicados aos Exus vão se insinuando aquelas máscaras chifrudas de entidades que, conforme as crenças orientais, representam seres protetores e destruidores dos malefícios. Do diabo nosso eles têm apenas a cara feia e os pontudos chifres. Esperemos."

Lembremos de uma fita de 1997 com Al Pacino, O advogado do diabo, onde o cramunhão surge encarnado num dono de escritório advogatício, a comprar a alma de um jovem e promissor causídico... No final, desfeita a trama - que deve sempre acabar bem, recomenda os donos das bilheterias - o coiso ressurge, agora como jornalista, ameaçando e prometendo uma continuação que, felizmente, não conteceu... Talvez o danado esteja migrando do mundo intangível para o tangível, onde a maldade encontra mecanismos legais e de divulgação próprios e mais efetivos para fazer "perder o homem"...

Um comentário:

Anônimo disse...

Verdade.
Tem gente que põe medo no pé peludo...
Me lembra uma estória do cara que vende a alma pro canhestro e é salvo pela esposa, numa manobra que beira ao contorcionismo. Mas não posso contar nesse dileto espaço...

Pp