quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Arrelia e a censura

Quando fazia a minha pesquisa de doutorado sobre o circo, uma pergunta ficava me martelando: havia censura no circo? Afinal, eu estava usando um arquivo de processos de censura do Departamento de Diversões Públicas de São Paulo para entender como evoluiu o circo-teatro na cidade. Sim, havia. Mas de 1.080 peças do gênero presentes no Arquivo Miroel Silveira, somente dez haviam sido vetadas pela censura, embora uma infinidade de outras sofreram pequenos cortes de palavras. Nada comparado ao que os demais gêneros de teatro eram submetidos. Bom, conclui a pesquisa e, há um mês, me deparo com essa crônica do Afonso Schmidt, que consta do livro São Paulo de meus amores, editado em 1954 por ocasião do quarto centenário de São Paulo.
Lembrei que, ao entrevistar o herdeiro de Arrelia, Waldemar Seyssel Filho, ele havia me contado que a amizade do pai com os censores era tamanha que, certa vez, eles o presentearam com um relógio de bolso, onde foi gravada uma dedicatória do departamento ao grande cômico. Contou ainda que a presente se perdeu no espólio de Arrelia dividido entre os familiares, o que lamentava muito. A crônica de Schmidt termina assim:

Cada noite, uma anedota nova. Em cada anedota ele põe um pouquinho de sua alma popular, solidária com as agruras do povo. Antigamente, sofria com isso. Depois de contar a pilhéria, via um sujeito de mac-farlane à sua espera, na entrada dos bastidores, com um envelope na mão. Tratava-se de um convite para ele, no dia seguinte, ir conversar com a censura. Arrelia nunca faltava à chamada. Descia do automóvel à porta da repartição e entregava ao porteiro o cartão de visita. O porteiro benguela, ao reconhecê-lo, mostrava o 1001 das gengivas. E levava-o ao censor.
            - Você outra vez aqui? – perguntava o funcionário, encantado com a visita.
            - Chamaram-me...
            - Pois eu gosto muito de ouvir as suas anedotas. Aquela de ontem, hein? A mulher da fila do açúcar... O engraxate que não tinha onde dormir... O chefe de família que aproveitou a saída de uma mudança para aboletar-se na casa, sem licença do senhorio... Você é da pele do demônio! Mas por que motivo você não arranja outros assuntos?
            - Porque esses são a vida.
            - A vida de quem?
            - Dos pobres diabos, dos pés-rapados, dos infelizes, isto é, da minha gente.
            Então os dois riam, um diante do outro, por motivos diversos.
            - Olhe, volte para o seu circo e deixe de bobices.
            Arrelia voltava. Na mesma noite contava outra anedota. Quando terminava, entre o clamor do público divertido, espiava com o rabinho do olho para a entrada dos bastidores e sentia frio. É que lá estava o sujeito de mac-farlane, o sujeito da meia-noite, com um envelope na mão, à sua espera...

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